Introdução
Você já ouviu falar em tratamento off-label ou uso off-label de medicamento? Estes termos, cada vez mais presentes na medicina moderna, referem-se à prática médica de prescrever um medicamento para uma finalidade diferente daquelas explicitamente aprovadas e descritas em sua bula oficial registrada na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Apesar de ser uma prática médica comum, segura e muitas vezes essencial, baseada em sólidas evidências científicas, a prescrição off-label frequentemente encontra barreiras.
Operadoras de planos de saúde e até mesmo o Sistema Único de Saúde (SUS) costumam negar a cobertura desses tratamentos, principalmente quando envolvem medicamentos de alto custo, alegando falta de previsão na bula ou no Rol da ANS.
Contudo, é crucial entender que essa negativa é, na maioria dos casos, ilegal e abusiva.
A Justiça brasileira, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem um entendimento consolidado de que o direito à saúde e a indicação médica fundamentada prevalecem sobre restrições administrativas.
Neste guia completo, vamos desmistificar o tratamento off-label, explicar por que ele ocorre, diferenciá-lo de tratamentos experimentais, detalhar a base legal que obriga a cobertura por planos de saúde e pelo SUS, e mostrar o caminho para garantir seu direito ao tratamento prescrito, inclusive através de liminar.
O Que Significa Exatamente “Tratamento Off-Label”?
“Off-label”, em tradução literal do inglês, significa “fora do rótulo”.
No contexto farmacêutico, “rótulo” refere-se à bula oficial do medicamento, aprovada pela agência reguladora do país – no Brasil, a ANVISA.
Portanto, um uso off-label ocorre quando um médico prescreve um medicamento para:
- Uma doença ou condição não listada nas indicações da bula;
- Uma faixa etária diferente da aprovada (ex: uso pediátrico de um remédio aprovado para adultos);
- Uma dose ou via de administração diferente da especificada na bula.
É fundamental destacar: a prescrição off-label não é feita aleatoriamente.
Ela se baseia no conhecimento técnico-científico do médico e em evidências científicas robustas (estudos clínicos, publicações em revistas médicas, diretrizes de sociedades de especialidade) que demonstram a eficácia e segurança do medicamento para aquela nova finalidade, mesmo que a bula ainda não tenha sido atualizada para incluí-la.
Por Que a Prescrição Off-Label Acontece com Frequência?
A prática do uso off-label é comum e necessária na medicina por diversas razões ligadas ao ritmo da ciência e à burocracia regulatória:
- A Ciência Avança Mais Rápido: Novas descobertas sobre mecanismos de doenças e a eficácia de medicamentos surgem constantemente através de pesquisas clínicas. A ciência evolui muito mais rápido do que os processos regulatórios de atualização de bulas.
- Processo Burocrático e Custoso: Incluir uma nova indicação na bula de um medicamento exige que a indústria farmacêutica realize novos estudos específicos, submeta um dossiê complexo à ANVISA e pague taxas significativas. É um processo longo e caro.
- Falta de Interesse Comercial: Em alguns casos, especialmente para doenças raras ou nichos de mercado menores, a indústria farmacêutica pode não ter interesse financeiro em investir na atualização da bula, mesmo que existam evidências científicas para o uso off-label.
- Necessidades de Populações Específicas: Muitas vezes, faltam estudos específicos e aprovações formais para o uso de medicamentos em pediatria, gestantes ou idosos, tornando o uso off-label, baseado na melhor evidência disponível, a única opção terapêutica.
- Medicina Personalizada e Biomarcadores: Principalmente na oncologia, a escolha do tratamento é cada vez mais guiada por características moleculares e genéticas do tumor (biomarcadores). Um medicamento pode ser eficaz para um tumor com uma mutação específica, mesmo que essa mutação não esteja listada na indicação original da bula para aquele tipo de câncer. (Ex: Olaparibe para câncer colorretal com mutação BRCA).
- Doenças Raras: Para muitas doenças raras, não existem medicamentos com indicação específica em bula. O tratamento se baseia frequentemente no uso off-label de medicamentos aprovados para outras condições, com base em estudos menores ou relatos de casos.
A prescrição off-label, portanto, não é um improviso, mas uma decisão médica consciente, baseada em evidências, para oferecer ao paciente o melhor tratamento disponível segundo o conhecimento científico atual.
Diferença Crucial: Tratamento Off-Label NÃO é Tratamento Experimental!
Este é um ponto fundamental e uma das principais táticas usadas pelos planos de saúde para negar a cobertura: confundir tratamento off-label com tratamento experimental.
Essa confusão é incorreta e abusiva.
- Tratamento OFF-LABEL: Refere-se ao uso de um medicamento JÁ APROVADO pela ANVISA (com registro válido) para uma finalidade diferente da bula, mas com COMPROVAÇÃO CIENTÍFICA de eficácia e segurança para essa nova finalidade (através de estudos clínicos, literatura médica, etc.).
- Tratamento EXPERIMENTAL: Refere-se ao uso de um medicamento ou procedimento que AINDA NÃO TEM COMPROVAÇÃO CIENTÍFICA de eficácia e segurança para NENHUMA finalidade, ou que está em fases iniciais de pesquisa (testes em laboratório ou em poucos pacientes) e cujo benefício é incerto. Medicamentos sem registro na ANVISA também são considerados experimentais no Brasil.
A Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98) permite a exclusão contratual de tratamentos experimentais.
No entanto, o tratamento off-label NÃO se enquadra nessa exclusão, pois utiliza medicamento registrado e possui respaldo científico.
A negativa baseada nesse argumento é, portanto, ilegal.
Leis e Decisões Judiciais Chave que Confirmam a Cobertura Off-Label
Diversas normas e decisões judiciais importantes reforçam o direito à cobertura de tratamentos off-label pelos planos de saúde.
A Lei nº 14.454/2022, apesar de ter como foco principal a natureza exemplificativa do Rol da ANS, estabeleceu critérios claros para a obrigatoriedade de cobertura de procedimentos não listados.
Entre esses critérios, destaca-se a exigência de comprovação de eficácia à luz das ciências da saúde, com base em evidências científicas — requisito que muitos tratamentos off-label atendem plenamente.
Além disso, a Súmula 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) determina que, havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de custeio de tratamento com base em sua suposta natureza experimental ou por não constar no Rol da ANS.
Embora a súmula não mencione explicitamente os tratamentos off-label, ela combate exatamente os principais argumentos utilizados pelos planos de saúde para recusar esse tipo de cobertura.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, também possui entendimentos consolidados sobre o tema, como no julgamento do EREsp 1.886.929.
Nessas decisões, o STJ reconhece que, desde que o medicamento possua registro na ANVISA e haja indicação médica fundamentada em evidências científicas, a cobertura pelo plano de saúde é obrigatória.
A Corte ainda faz uma distinção importante entre uso off-label (cuja cobertura é devida) e tratamentos experimentais (cuja cobertura pode não ser obrigatória).
Esses marcos legais e jurisprudenciais formam uma base sólida para exigir judicialmente a cobertura de tratamentos off-label, especialmente quando há respaldo técnico e prescrição médica justificada.
Por Que as Negativas Baseadas em “Off-Label” ou “Fora do Rol da ANS” São Abusivas?
A negativa de cobertura de um medicamento prescrito em regime off-label pelo plano de saúde, mesmo diante de sólido respaldo científico e jurídico, costuma se apoiar em justificativas frágeis, frequentemente consideradas abusivas pelos tribunais.
Uma das alegações mais comuns é a de que o uso não consta na bula do medicamento. Esse argumento ignora o fato de que a bula é um documento regulatório, muitas vezes desatualizado frente aos avanços científicos, e que o critério legal mais relevante é a existência de registro do fármaco na ANVISA e a comprovação de eficácia para o uso proposto com base em evidência científica.
Outra justificativa recorrente é a de que o tratamento não está previsto no Rol de Procedimentos da ANS. No entanto, essa argumentação desconsidera que o Rol tem natureza exemplificativa, conforme expressamente reconhecido pela Lei nº 14.454/2022.
A acusação de que se trata de um tratamento experimental também é utilizada indevidamente para justificar a recusa, confundindo – muitas vezes de forma deliberada – o uso off-label com a experimentação clínica.
O uso off-label, diferentemente do experimental, conta com respaldo técnico-científico consolidado, sendo indicado por médicos com base em evidências.
Por fim, o argumento do alto custo, embora não declarado abertamente, costuma ser o verdadeiro motivo por trás de muitas negativas. No entanto, esse fator econômico não tem respaldo legal. A operadora do plano de saúde não pode se recusar a custear um tratamento necessário apenas por ser caro, sobretudo quando a doença está coberta pelo contrato e a indicação médica é fundamentada.
Esses pontos evidenciam que a recusa de cobertura, nesses casos, afronta a legislação vigente e os princípios do Código de Defesa do Consumidor, sendo passível de reversão judicial.
Leia mais: https://freitasetrigueiro.com.br/negativa-tratamento-medicamento-plano-saude/
O SUS Também Deve Cobrir Tratamento Off-Label?
Sim, o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ser obrigado a fornecer medicamentos para uso off-label, embora isso exija o cumprimento de requisitos legais específicos.
Diferentemente dos planos de saúde, o fornecimento pelo SUS geralmente ocorre por via judicial, com base no direito constitucional à saúde e em entendimentos consolidados do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A base legal está no artigo 196 da Constituição Federal, que garante o acesso universal e integral à saúde.
Além disso, o STJ, ao julgar o Tema 106, definiu critérios para a concessão de medicamentos não incorporados em atos normativos oficiais, como a RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT).
De acordo com o Tema 106, o paciente precisa comprovar três pontos principais:
- Que o medicamento é imprescindível e os fármacos fornecidos pelo SUS são ineficazes;
- Que não tem condições financeiras de arcar com o tratamento;
- Que o medicamento possui registro sanitário na ANVISA, mesmo que não esteja oficialmente incluído nas listas do SUS.
O pedido, na maioria dos casos, deve ser feito por meio de ação judicial.
Nela, o relatório médico precisa ser claro, detalhado e comprovar que todas as opções disponíveis na rede pública foram tentadas, mas não surtiram efeito.
Isso é fundamental para convencer o juiz da urgência e necessidade do fornecimento.
A atuação de um advogado especialista em ações contra o SUS é altamente recomendada.
Portanto, apesar de ser um caminho mais exigente, o fornecimento de medicamentos off-label pelo SUS é possível e pode ser garantido judicialmente, desde que respeitados os critérios estabelecidos pelo STJ e com a devida orientação jurídica.
Fale agora com a nossa equipe especializada e entenda como garantir seus direitos.
Negativa Recebida: Como Agir Para Garantir o Tratamento Off-Label?
Se você recebeu uma negativa do plano de saúde (ou do SUS) para um tratamento off-label prescrito por seu médico, não desista!
Siga estes passos:
- Solicite a Negativa Formal e Por Escrito: Peça que a operadora (ou o órgão do SUS) documente a recusa e o motivo. Isso é prova essencial.
- Obtenha um Relatório Médico Impecável: Este é o documento mais crítico. Peça ao seu médico:
- Diagnóstico completo, histórico de tratamentos.
- Indicação clara do medicamento off-label, dose, duração.
- Justificativa detalhada para o uso off-label: por que é necessário/superior às opções da bula ou do SUS?
- Citação das evidências científicas (estudos clínicos, diretrizes, artigos) que suportam o uso off-label para o seu caso específico. Isso é crucial!
- Declaração da urgência, se houver.
- Reúna Documentos Adicionais: Prescrição, laudos de exames, documentos pessoais, carteirinha do plano, comprovantes de pagamento, comprovante de renda (para ação contra o SUS).
- Consulte um Advogado Especialista em Direito à Saúde: Procure um profissional com experiência em ações contra planos de saúde e/ou SUS para cobertura de medicamentos, especialmente casos off-label. Ele analisará a viabilidade e ingressará com a ação.
A Liminar Como Ferramenta de Acesso Rápido
A ação judicial para obter tratamento off-label geralmente inclui um pedido de liminar (tutela de urgência).
Como explicado em outros contextos, a liminar visa garantir o acesso rápido ao medicamento, antes da decisão final do processo.
O advogado demonstrará a probabilidade do direito (com base no relatório médico, registro Anvisa e jurisprudência) e o perigo da demora (risco à saúde pela falta do tratamento). Decisões liminares costumam sair rapidamente (dias, às vezes horas).
Encontrando o Advogado Especialista Adequado
A complexidade dos casos envolvendo tratamento off-label exige um advogado com expertise específica:
- Conhecimento Específico: Deve entender a legislação de saúde, a jurisprudência do STJ sobre off-label e Rol da ANS, e ter capacidade de interpretar (ou buscar auxílio para interpretar) as evidências científicas apresentadas no relatório médico.
- Experiência Prática: Ter atuado em casos semelhantes aumenta as chances de sucesso.
- Acesso a Bases de Dados Científicas: Alguns advogados têm acesso ou sabem como pesquisar estudos que podem reforçar a argumentação judicial.
Lembre-se que o processo eletrônico permite contratar um especialista de qualquer lugar do Brasil.
Conclusão: Tratamento Off-Label é Direito, Não Favor
O tratamento off-label, quando prescrito por um médico com base em sólidas evidências científicas, representa uma ferramenta valiosa na medicina moderna, permitindo o acesso a terapias eficazes que podem ainda não constar na bula oficial por razões burocráticas ou comerciais.
A negativa de cobertura por planos de saúde ou pelo SUS, baseada unicamente no argumento de ser “off-label” ou “fora do Rol da ANS”, é uma prática abusiva e ilegal, contrariando a legislação e o entendimento consolidado da Justiça brasileira.
O que importa é o registro do medicamento na ANVISA e a comprovação científica de sua eficácia para a condição do paciente, conforme atestado pelo médico.
Se você ou alguém próximo recebeu indicação de um tratamento off-label e está enfrentando dificuldades para obter a cobertura, é fundamental conhecer seus direitos.
Perguntas Frequentes (FAQ) – Tratamento Off-Label e Cobertura
1. Todo e qualquer uso off-label de medicamento deve ser coberto pelo plano de saúde?
Não necessariamente “qualquer” uso. A cobertura é obrigatória quando o medicamento tem registro na ANVISA e a indicação off-label feita pelo médico está fundamentada em evidências científicas sólidas que atestam sua eficácia e segurança para aquela condição específica. Usos sem base científica podem ser considerados experimentais.
2. Que tipo de “evidência científica” é necessária para justificar o uso off-label?
O ideal são estudos clínicos publicados em revistas médicas de renome, diretrizes de sociedades de especialidade nacionais ou internacionais, protocolos clínicos de instituições de referência, ou aprovações por agências regulatórias internacionais (como FDA ou EMA) para aquela indicação off-label. O médico deve citar essas fontes no relatório.
3. O médico tem alguma responsabilidade ao prescrever off-label?
Sim. A prescrição off-label é um ato de responsabilidade médica. O médico deve ter segurança técnica e científica para fazer a indicação, baseando-se na melhor evidência disponível e no melhor interesse do paciente, e deve informar o paciente sobre o caráter off-label da prescrição.
4. E se o medicamento off-label for importado e não tiver registro na ANVISA?
A situação muda significativamente. A Lei dos Planos de Saúde exige o registro na ANVISA como regra geral para cobertura. A jurisprudência do STJ também tem sido restritiva quanto a medicamentos sem registro. Embora existam exceções muito específicas (medicamentos para doenças raras sem alternativa no Brasil, com aprovação em agências renomadas e após análise caso a caso), a regra geral é a não obrigatoriedade de cobertura para medicamentos sem registro na ANVISA. O tratamento off-label discutido aqui pressupõe que o medicamento em si tem registro, sendo apenas a indicação que está fora da bula aprovada no Brasil.
5. O uso off-label de medicamentos é comum na prática médica?
Sim, é extremamente comum em diversas áreas, como oncologia, pediatria, psiquiatria, reumatologia e neurologia. Muitas vezes, representa a melhor ou a única opção terapêutica disponível para o paciente, segundo a ciência atual.
6. Se a ANVISA não aprova o uso na bula, significa que não é seguro?
Não necessariamente. A falta de aprovação na bula pode ocorrer por diversos motivos (burocráticos, comerciais, falta de estudos específicos submetidos pela farmacêutica), e não apenas por falta de segurança ou eficácia comprovada em estudos clínicos para aquela indicação off-label. A avaliação de segurança e eficácia para o uso off-label é feita pelo médico com base na literatura científica.